ASPECTOS E CONSIDERAÇÕES SOBRE A QUESTÃO INDÍGENA NO BRASIL E NO RIO GRANDE DO SUL
Segundo uma definição das Nações Unidas (1986), as comunidades, os povos e as nações indígenas são aqueles que, contando com uma continuidade histórica das sociedades anteriores à invasão e à colonização que foi desenvolvida em seus territórios, consideram a si mesmos distintos de outros setores da sociedade, e estão decididos a conservar, a desenvolver e a transmitir às gerações futuras seus territórios ancestrais e sua identidade étnica, como base de sua existência continuada como povos e em conformidade com seus próprios padrões culturais.
No Brasil existiam mais de cinco milhões de índios em 1500, falando mais de mil línguas. Hoje, são aproximadamente 375.000 índios, divididos em 222 etnias, se expressando em 180 línguas (SIASI/FUNASA, 2002). Segundo dados divergentes do IBGE (2001), vivem no Brasil aproximadamente 700.000 índios, falando 241 línguas.
No Rio Grande do Sul, estão presentes três etnias: os Guarani (Mbyá e Ñandeva), os Kaingang e os Charrua. Estima-se uma população no Brasil de cerca de 65 mil Guarani, 33 mil Kaingang (FUNASA, 2005) e 676 Charrua (INAI, 2004).
O Karaí (líderes espirituais) e seus conhecimentos são fonte da manutenção da cultura indígena
Nas regiões sul e sudeste do Brasil (do estado do Rio Grande do Sul ao Espírito Santo) encontram-se cerca de 100 áreas ocupadas pelos Guarani. Na faixa litorânea desses estados estão cerca de 60 aldeias, das quais somente 16 tiveram áreas demarcadas e homologadas pela Presidência da República.
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (1989), ratificada (reconhecida como Lei do país) pelo Brasil em 2003, assegura: A universalização do direito à educação formal aos povos indígenas (art. 21); A consideração de realidades sociais, econômicas e culturais específicas e diferenciadas (art. 22); A prescrição de modelos de alfabetização em língua materna e de educação bilíngüe (art. 23); A incorporação pelo ensino primário de conhecimentos gerais e aptidões tornados necessários pelo contato (art. 24); O combate ao preconceito contra os povos indígenas nos diversos setores da comunidade nacional (art. 25) e o reconhecimento oficial das línguas indígenas como instrumentos de comunicação com essas minorias (art. 26).
Os povos indígenas conservam uma visão sagrada da natureza. As pedras, os lagos, rios, as árvores, as matas, os animais, fortemente conectados aos deuses e espíritos são sagrados e possuem riquíssimos significados. Terra/Território é vida e modo de ser e viver para os povos indígenas, não somente no sentido de um bem material ou fonte de produção, mas onde se sustentam todas as formas de vida. Seus deuses, espíritos, bens, valores, conhecimentos, tradições, que garantem a possibilidade e o sentido da vida individual, coletiva e noneária. Por tais questões, terra é fator fundamental de resistência para os povos indígenas.
Segundo dados do Departamento Fundiário (DAF) da FUNAI (2006), existem no Brasil 612 terras indígenas com algum grau de reconhecimento por parte do órgão, totalizando uma extensão de 106. 373.144ha, ou seja, 12,49% do território brasileiro. A Amazônia Legal é a região brasileira que concentra a maior parte das terras indígenas em número e extensão. São 405 terras indígenas, que somam 103.483.167ha, ou seja, 66,17% de todas as terras indígenas do país.
Somente na década de 80 as poucas Terras Indígenas começaram a ser demarcadas. Atualmente os Guarani vivem em aldeias e acampamentos próximos às rodovias, visitando parentes, vendendo o artesanato que produzem e/ou buscando trabalhos sazonais.
A falta de terras adequadas e a saúde, sobretudo a desnutrição infantil, constituem seus maiores problemas. Segundo dados da FUNASA (Agosto, 2006), 100 a 190 mil índios vivem fora de terras indígenas.
No Brasil, o número de portadores de doenças é de 60,7 para cada grupo de 1.000 habitantes, já considerado intolerável pela Organização Mundial de Saúde. Porém, entre a população indígena esse número sobe para 112,7.
Algumas tradições mantidas pelos povos indígenas devem ser valorizadas e constituem um verdadeiro desafio de re/aprendizagem para a sociedade não indígena, tais como: A família e a comunidade são os responsáveis, em primeiro lugar, pela educação dos filhos. É na família que se aprende a língua materna (de origem) e nela se aprende a viver segundo os costumes: ser um bom caçador, um bom pescador, um bom artesão... Respeitando o dom, a missão de cada indígena. Na família, aprende-se a fazer roça, plantar, fazer casas tradicionais, artesanato, aprende-se a cuidar da saúde, curar doenças, conhecer as plantas medicinais, aprende-se a conhecer as matas, os rios, a caça... Os conhecimentos dos pajés (“serviços de educação/cultura/saúde”) estão a serviço de todos. Não existem crianças órfãs e abandonadas. O respeito aos mais velhos é fundamental e presente.
De forma resumida, é possível perceber, no Brasil, períodos políticos distintos em que as sociedades indígenas foram consideradas de selvagens a “incapazes”, passando por períodos de total invisibilidade e hoje são muitas vezes julgadas como obstáculos ao “desenvolvimento nacional”.
Tentativas totalitárias, como o Ato Institucional nº 1 (Art. 8), em 1969, afirmava literalmente a necessidade de “incorporação dos silvícolas à comunhão nacional”. Nesse mesmo ano, o governo federal cria a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), órgão sucessor do SPI (Serviço de Proteção ao Índio), com a explícita missão de acelerar o processo de integração dos índios.
O Estatuto do Índio, promulgado em 1973 sob a influência da convenção 107/OIT na política indigenista, menciona explicitamente a alfabetização dos índios “na língua do grupo a que pertencem” (art. 49). No entanto, nada menciona sobre a adaptação dos programas educacionais às realidades sociais, econômicas e culturais específicas de cada povo. Atualmente o Estatuto dos Povos Indígenas, após anos de revisão, está tramitando no Congresso Nacional.
A Constituição Federal e muitos outros dispositivos legais asseguram direitos indígenas como os direitos à terra, que devem ser respeitados e garantidos nos processos de demarcação e regularização das terras indígenas; os direitos a uma atenção diferenciada nos serviços de saúde e de educação escolar indígena, que permite a cada povo indígena definir e exercitar, no âmbito de sua escola, os processos próprios de ensino-aprendizagem e a produção e reprodução dos conhecimentos tradicionais e científicos de interesse coletivo do povo e os direitos às ações de alimentação e nutrição sustentável, com enfoque na promoção da saúde e prevenção de doenças.
Ressalta-se também a atuação da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) na formulação de diretrizes e execução de ações com participação de índios, entidades indigenistas e do governo. A partir de 2009, o Conselho Nacional de Políticas Culturais (CNPC) passou a contar, finalmente, com um representante indígena e em 2010 foi formado o primeiro colegiado setorial de culturas indígenas (CNPC), que trabalhou na formulação do primeiro Plano Nacional Setorial para as Culturas Indígenas (http://www.cultura.gov.br/site/wp-content/uploads/2010/12/CI-DOWN.pdf).
O recente Decreto 7056 (dezembro de 2009) que aprova a reestruturação da FUNAI gerou muita polêmica, protestos e conflitos entre os indígenas, alegando falta de participação no processo, reivindicação antiga dos povos e movimentos indigenistas. Talvez a principal alteração esteja na extinção da finalidade da FUNAI de exercer a tutela dos índios, como constava no decreto anterior, de 2005. A forma de atuar deve mudar, mas as obrigações com os povos indígenas permanecem. Na verdade, a FUNAI não tem o poder de “falar” pelos indígenas desde a Constituição de 1988. Ela deve apoiar e prestar assistência aos povos indígenas no exercício de seus direitos, respeitando a grande diversidade cultural e os direitos originários.
A FUNAI permanece com a função de demarcar as terras indígenas, promover o desenvolvimento sustentável, exercer o poder de polícia (a favor dos indígenas), exercer assistência jurídica, e também acompanhar ações em áreas como educação, cultura, habitação e saúde. Em nosso estado (Rio Grande do Sul-RS) há 30 anos não há demarcação de terras indígenas. Em 2008, com ampla participação de indígenas e aliados, foram formados 05 GTs (Grupos Técnicos) com a função última de demarcar mais de 20 áreas indígenas no RS. Um dos GTs está em fase final de elaboração dos laudos (antropológico/ambiental) e um segundo GT está iniciando os estudos.
Importante Projeto de Lei tramita na Câmara Municipal de Porto Alegre (4079/2007), atendendo às expectativas e reivindicações de diversos atores e agentes na área ambiental, a fim de instituir o Sistema Municipal de Unidades de Conservação da Natureza de Porto Alegre (SMUC). Sem dúvida, é fundamental garantirmos a proteção da biodiversidade em áreas mais extensas e em risco de ocupação e especulação cada vez maior. Mas é também possível planejar e garantir, nessas mesmas áreas de conservação (a exemplo do SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação) o manejo sustentável realizado há décadas por comunidades indígenas que não impactam o ambiente de forma negativa, como o fazem os guarani residentes na aldeia da Lomba do Pinheiro, quando coletam ou caçam no Morro São Pedro, com profundo respeito à natureza.
Os gaúchos precisam reconhecer que esse mesmo guarani aqui estava antes da construção das cidades, da criação das fronteiras; que estradas, rodovias foram construídas a partir de suas trilhas; que sua língua deu nome a localidades, cidades, rios, lagos (como o próprio Guaíba), influenciando e construindo nossa história, nossos costumes, como o próprio chimarrão, o nosso “tchê”...
É preciso entender que as tradições e rituais desses povos estão diretamente relacionados aos ciclos ecológicos que determinam os ciclos produtivos. A dimensão social (e noneária) das economias indígenas considera as necessidades biológicas e materiais como bens não apenas de consumo, mas como necessidades espirituais e morais. Toda atividade econômica tem como função final garantir o bem-estar da coletividade. A abundância é sempre festejada, pois consideram que a abundância permite viver com intensidade a generosidade, a partilha, a noneariedade, a hospitalidade, o espírito comunitário e a reciprocidade.
As comunidades indígenas dependem dos recursos naturais para viverem de acordo com suas tradições e por isso manejam o ambiente respeitando sua capacidade produtiva. Em função disso, ao longo dos séculos e milhares de anos desenvolveram e aperfeiçoaram técnicas cada vez mais sustentáveis e um conhecimento singular de princípios ativos da flora e de comportamentos da fauna que precisamos reconhecer e os quais a ciência vem sistematizando, e as empresas incorporando, muitas vezes sem uma repartição justa dos benefícios.
por Denise Wolf
Bióloga, bacharel em ecologia e pós-graduanda em Gestão Ambiental (FGV-RS) Coordenadora regional e vice-presidente do IECAM, Instituto de Estudos Culturais e Ambientais